"Tudo isso aconteceu uma vez e acontecerá novamente"
Quando a humanidade ultrapassa os limites da ambição e da tecnologia.
Quando as maquinas transcendem os limites da humanidade e se elevam em relação
a seus criadores tudo que resta é a fuga. Esse é o conceito mais básico, e a
espinha dorsal de Battlestar Galactica (2003 - 2009). É também o esqueleto de
dezenas de dezenas de livros, franquias cinematográfica e outras sérias de TV.
Mas afinal, o que diferencia Battlestar Galactica dessas outras dezenas de séries e franquias?
É uma jornada sensacional de 73 episódios, em quatro temporadas. Tem
alta complexidade, consegue cumprir em todas as temporadas o papel de
equilibrar a ação e reflexão. Eu mergulhei nesse mundo, não esperando muito. E
em vez de uma praia, dei de cara com o abissal de um oceano pacífico. Pensei em escrever essa resenha após terminar a primeira
temporada. Mas quando terminei cheguei a conclusão que seria melhor escrever
somente após ver tudo.
Em algum momento, a humanidade não conseguiu se sustentar em seu planeta
natal, Kobol. Viver se tornaria insustentável. Eles então decidiram buscar um
novo lar. Um novo sistema solar, com doze planetas onde eles estabelecem suas
colônias. Entre elas Caprica, o lugar onde tudo começa. Ali vão nascer os
Cylons, robôs autônomos dotados de AI cuja única razão existencial é facilitar
a vida humana. Eles então se revoltaram, e entraram em guerra com os humanos.
Mas houve uma trégua. Uma trégua de 40 anos.
Durante 40 anos a humanidade viveu em paz, longe dos Cylons. Mas eles
voltaram. Eles evoluíram, sentiam e pareciam humanos. Chamavam-se "As
Crianças de Deus", e tinham um plano: destruir seus criadores, a
humanidade. Acreditavam que esse era seu destino, que o único e todo poderoso
Deus lhes criou para punir a humanidade. E após um genocídio nuclear que
destruiu a vida nos 12 planetas, os 50 mil sobreviventes se amontoaram numa
frota de astronaves lideradas pela Colonial 1 e a recém empossada presidente
Laura Roselin. Em busca de um novo lar, um planeta lendário chamado Terra, onde
haveria uma terceira colônia desconhecida que se separou das outras.
A astronave de batalha Galactica, a mais velha e desatualizada,
comandada por William Adama, foi o que restou de toda a frota militar das colônias,
e a única fonte de defesa da frota. Adama e seus oficiais deveriam estar
prontos para arriscar a vida todo momento e todos os dias para proteger o que
restou da raça humana enquanto Roselin se esforça em preservar os vestígios da
civilização - o governo, a lei, a moral - numa realidade de desespero que não
tem data para acabar, onde as pessoas ordinárias já não se importam com isso, e
buscam algo em que se agarrar.
Mas a Terra é um destino incerto, elemento de uma lenda messiânica
religiosa, sem qualquer conexão aparente com a realidade. A terra é uma
mentira, e ainda sim uma esperança. Inflados dessa ínfima e fraca esperança o
restante da humanidade vai fugir desesperadamente, cortando o vazio do cosmos,
pulando de galáxia em galáxia em busca da terra prometida. Mas existem Cylons
humanos escondidos na frota, e estão levando a cabo seu plano. E eles não podem
morrer.
Durante quatro temporadas a humanidade será dissecada em diferentes
níveis e instancias. Política, religião, moral, ciência, fé, destino.
Battlestar Galactica pega várias verdades da humanidade e quebra cada uma delas
impiedosamente ao longo dos episódios, depois as solda para quebrar outra vez.
Trazendo consigo uma máxima: tudo isso aconteceu uma vez, e
acontecerá novamente.
Afinal: há um destino para cada um de nós, afinal, até onde vai a razão
e a ciência? O que é fé e o que é religião? O que é moral e justiça? Existe
mesmo o bem e o mal, um culpado e um inocente, ou isso é pura invenção? Será
que inventamos tudo? Assim como construímos navios, prédios e robôs, todo resto
é uma farsa? Será que existem mesmo Deuses ou um Deus, e se ele existe
realmente orquestra um grande plano divino? Será que no fim das contas somos
todos escravos do destino? Ou melhor, e se ele existir, mas
simplesmente não estiver do lado de ninguém?
O enredo de Battlestar Galactica bastante complexo e coeso. A ação nos tribunais e parlamentos é tão intensa quanto no oceano escuro do cosmos, nas batalhas entre humanos e Cylons. O existencialismo e
o cientificismo e desdobram até o ápice e confrontam a religiosidade, o sincretismo,
a glorificação e demonização. Seus personagens são como pedaços de ferro, fervidos para criar aço e então resfriados e fervidos outra vez, e
martelados mil vezes e outras mil vezes após esta. Alguns deles quebram.
A
série não tem a intenção de descartar ou reafirmar qualquer crença ou ponto de
vista. Fruto de um sincretismo engenhoso e muito referencial, ela brinca com as
crenças da sociedade, com o teor profético da religião, com a reinterpretação
metafórica das escrituras, tal como as sociedades fazem hoje.
Mais do que respostas, traz perguntas
fundamentais e carrega consigo a lição de que, qualquer que seja o fim, a viagem
é o mais importante. E depois de tantos episódios, um aviso. Talvez isso
realmente tenha acontecido antes, e talvez realmente aconteça depois. Talvez
não. Mas nós não sabemos
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